Professora indígena ensina cultura, tradição e respeito à ancestralidade dos Tupinambás

Bahia

20.10.2020

Na junção da mata com o mar, a beleza dos elementos naturais se fundia em uma casa simples de taipa, dando vazão à sabedoria ancestral indígena, que começou a brotar na pequena Marcineia Vieira. Filha da jovem Lele, a criança foi criada ao lado da mãe e dos avós, Dona Sônia e Sr. Esmeraldo, na Comunidade Olho D`Água, que, na época, era conhecida como Águas de Olivença. Desde novinha, ela já suspeitava: "ser indígena no Brasil não é fácil". De origem Tupinambá, ela carrega a história de um povo de luta e de resistência e, na sala de aula, ensina a preservar a cultura, as tradições e a identidade das diferentes etnias brasileiras, inclusive a dela. 

A garota iniciou a alfabetização aos sete anos, no momento em que surgia a primeira escola pública perto de casa. Continuar com os estudos era um desafio para a família. O transporte escolar não era gratuito e conseguir dinheiro para a passagem, diariamente, era uma tarefa árdua. A situação perdurou até a sétima série, quando se tornou insustentável. Então, Marcineia foi morar em Itabuna, com a tia. Após concluir o curso de magistério, a garota voltou para sua terra natal, se mudando posteriormente para a comunidade de Acuípe do Meio, onde leciona no Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Acuípe de Baixo, em Ilhéus.

Marcineia é formada em Pedagogia, pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), com mestrado na mesma instituição. Concursada, ela está na rede pública estadual há seis anos. A paixão pela Educação, segundo conta, surgiu através da indignação pela falta de representatividade da cultura indígena no ensino convencional. “Durante meu período como estudante e professora, constatei que os indígenas apareciam nos livros didáticos como seres do passado, exóticos, que comiam peixe cru, pescavam, caçavam e confeccionavam cestos. Como não havia relação com a nossa vida na comunidade, era difícil para mim construir um pertencimento àquela imagem de 'índios'. Vivenciávamos uma cultura indígena sem poder nos afirmar como tal e senti a necessidade de atrelar os conhecimentos com as nossas tradições ligadas às crenças, à economia e à organização social. A partir dos encontros nas comunidades e ações do movimento indígena, fui acreditando que a Educação Escolar Indígena poderia sim acontecer de forma diferente”,  recorda-se.

 
O sentimento de pertencimento e a necessidade de preservar a identidade de um povo fizeram da garota uma mulher ativista. “Gosto de ser chamada de Marcineia Tupinambá, me deixa fortalecida. Antes de sermos reconhecidos como Povo Tupinambá de Olivença, éramos chamados de 'Caboclos de Olivença' ou 'descendentes de índios', termos que eram uma negação de quem realmente éramos. Esse olhar equivocado nos mostrou que precisávamos de uma constante reafirmação identitária. O contato com anciões, a exemplo de Dona Nivalda, conhecida como Amotara, e Sr. Alício e as ações do nosso cotidiano me ajudaram a compreender a história dos nossos povos e a luta pelo reconhecimento. Não é fácil reafirmar-se como minoria em um país como o nosso. Se faz necessário lutar contra uma história perversa de preconceito e discriminação e se orgulhar, a cada dia, dos nossos antepassados, que passaram por tantos massacres. Hoje, continuo essa luta através da educação e pretendo levar à frente o legado dos nossos ancestrais”, afirma a indígena.

A professora conta que a luta começou em uma antiga casa de farinha. O local era precário, o material didático também. Não existia energia elétrica e móveis. As paredes borradas pelo tempo e iluminadas pela chama de um lampião aceso a querosene eram o cenário das primeiras salas de aula. Mesmo diante das dificuldades, ela contou com o apoio da comunidade e transformou aquele local em um ambiente de aprendizado para adultos. 

De acordo com a liderança indígena Tupinambá, Amanary, a professora é uma mulher que orgulha a comunidade. “É guerreira, perseverante e resistente. Ela atua na Educação Escolar Indígena desde 1999 como voluntária, tornando-se efetiva posteriormente. Sua trajetória é linda, pois permaneceu na sua comunidade e lutou diariamente para frequentar a universidade. Hoje, é uma mestra em Educação e com o conhecimento adquirido vem ajudando seu povo a ficar mais forte para conquistar uma educação de qualidade e igualitária para os nossos jovens que buscam uma vaga na universidade”.

A ex-aluna Orléia Amorim Brito, de 27 anos, se recorda com carinho da mestra e comenta como ela se tornou uma grande inspiração. “Meu contato com ela foi uma das maiores experiências da minha vida. Consegui terminar o Ensino Médio com 27 anos. Já havia desistido várias vezes em outros colégios, mesmo faltando apenas um ano. Quando fui fazer novamente a matrícula, ela já me ajudou de cara, me informando documentos que deveria levar e dizendo que eu fosse mesmo! Naquela escola, me senti acolhida, incentivada.  Ela me deu forças quando em mim faltava. Fui incentivada a fazer o ENEM e passei para Comunicação Social, na UESC, porém decidi não cursar. Adivinhe o motivo? Depois de conhecer a Marcineia, eu quis ser professora também! Hoje, estou fazendo graduação em Psicopedagogia, graças a todo o apoio que recebi”, afirma, emocionada e grata pela inspiração que a vida lhe proporcionou.


Reportagem: Pedro Moraes