Bahia
20.08.2021A estudante Carlúcia Alves Ferreira, 21, trouxe para a comunidade Quilombola Lagoa dos Anjos, no município de Candiba, uma grande notícia. Foi aprovada no vestibular para Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), no Rio Grande do Sul. Foram dois anos de desafios. O clima seco e quente do semiárido e as dificuldades encontradas ao decorrer da sua história lapidaram uma quilombola aguerrida, que encontrou na força ancestral a motivação para criar rotinas intensas de estudos e enfrentar os desafios. Matriculada no curso, as aulas começaram na modalidade EAD, por conta da pandemia do novo Coronavírus.
Após concluir o Ensino Médio no Colégio Estadual Antônio Batista, em 2019, Carlúcia foi aprovada no curso de Enfermagem da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), porém, contrariando muitos conselhos, cancelou sua matrícula para continuar em busca do seu sonho, que era passar em Medicina. “Comecei a estudar em casa, com auxílio das plataformas gratuitas e dos conteúdos do projeto ENEM 100%. Estudava de segunda a sábado, fazia duas redações e um simulado por semana. Tive o apoio irrestrito de professores da escola, em especial a professora de Redação Vina Queiroz, que se reunia comigo para pensar estratégias de estudos e transmitir”, lembra Carlúcia.
Além da rotina de estudos, Carlúcia se dedicava a pequenos empreendimentos, com venda de lanches, artesanatos, aulas de reforço escolar para crianças da comunidade e um grupo de dança. Mesmo com tantas atribuições, seu desejo não foi afetado. “Meus pais nunca puderam dar algo a mais do que o básico. Então, a minha vida no quilombo sempre foi muito limitada. Porém, isso não impediu que eu sonhasse grande e, com o incentivo da minha mãe, nunca desisti da Medicina. Gosto de pessoas e de cuidar delas. Quero estar presente tanto nos momentos mais tristes, quanto nos mais felizes. Sou uma prova de que uma preta pobre pode ser uma médica. Fiz minha matrícula e vou fazer de tudo para ser uma excelente profissional e proporcionar para a minha família e as pessoas que eu amo uma vida mais confortável”.
Carlúcia mora em uma casa pequena, com os pais e sua irmã. Sua mãe Luciene Santos Alves Silva tem 47 anos e trabalha como lavradora. Conhecida no quilombo como Tia Yô, ela diz estar realizada com a conquista da filha. “É uma felicidade muito grande. Sempre sonhei em estudar, mas na minha época as mulheres daqui não podiam, isso era coisa de menino. Estou emocionada e muito feliz. Carlúcia vai ser inspiração para muitas jovens pretas que vivem na zona rural, de renda muito baixa como nós. Ela é uma menina decidida, com uma fala firme e com propósito para a vida. Tenho certeza de que esta é a primeira de muitas conquistas que essa guerreira quilombola vai ter”.
A professora Vina leciona Práticas Integradoras na rede estadual e Língua Portuguesa e Espanhola na rede privada e lembra que a capacidade da menina já era mostrada na escola. “Desde mais nova ela já participava de todos os eventos que aconteciam no colégio, incluindo os desfiles de cultura e beleza negra. Era lindo ver o orgulho de sua negritude e seu poder de liderança, levando para a comunidade escolar os traços culturais do quilombo, sendo protagonista da sua própria história. Essa conquista é fruto da persistência, resistência e de anos dedicados ao estudo. Carlúcia representa a importância de políticas públicas de ação afirmativa, que possibilitaram a todos o direito de sonhar e conquistar seus sonhos. Que a sua vitória sirva de inspiração para milhares de estudantes negros, pobres e de escolas públicas”.
O esforço e a trajetória da nova aluna de Medicina já estimulam outros jovens da comunidade. É o caso da estudante do 1º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Antônio Batista, Vanessa da Silva, de 16 anos. “Ela é um exemplo, uma pessoa muito estudiosa, que sempre lutou pelos seus sonhos. Vejo sua determinação para conquistar diversos sonhos e isso é uma fonte de inspiração para mim e para vários outros jovens da nossa comunidade. Saber que um de nós vai cursar Medicina propicia uma felicidade imensa para toda a comunidade quilombola”.